O Laboratório de Ética sonora foi criado em abril de 2020 como grupo de pesquisa que objetiva compreender a mútua interação entre o que é consolidado como costume sonoro e, portanto, baliza práticas socialmente aceitas; e o que é praticado sonoramente, englobando novas interações e ressignificando os costumes. Está inserido no campo de debates da Ética sonora e, embora esteja abrigado dentro da área da Música, não restringe a participação de demais profissionais e interessados na temática. As iniciativas de investigação contemplaram inicialmente e com mais ênfase a cidade de João Pessoa, mas a situação de isolamento social a partir de abril de 2020 fez com que os desdobramentos pudessem ser estendidos para outras localidades do estado da Paraíba, da região Nordeste e do Brasil. O grupo pretende colaborar com a formação de uma cultura coletiva acerca do som. Em João Pessoa, tal cultura coletiva seria estimulada também através do convênio de pesquisa entre a Universidade Federal da Paraíba e outras IFES, órgãos municipais e estaduais, organizações não-governamentais e segmentos diversos do poder privado, mas, durante o primeiro ano, essas parcerias não foram consolidadas. Sendo assim, as ações desenvolvidas pelo grupo contemplaram o contato com pessoas físicas interessadas na temática.
Parte-se da necessidade de criar-se uma cultura coletiva acerca do som e seus impactos na vida humana considerando o caráter complementar e obrigatório entre as dimensões físicas e simbólicas do som e da música na sociedade. As dimensões físicas do som englobam aspectos fisiológicos e acústicos como nível de pressão sonora, poluição sonora, perturbação do sossego e fisiologia do som. São, em sua maioria, considerados com maior grau de materialidade na sociedade, porque são termos conhecidos, difundidos em legislação, mensurados por instrumentos quantitativos e utilizados na vida social cotidiana. As dimensões simbólicas do som, por outro lado, podem guardar maior grau de subjetividade, englobando pertencimento, estética, afeto, crença e identidade. Embora também sejam termos conhecidos e também tenham lugar e utilização na vida social cotidiana, não estão – e nem seria possível - mensurados de forma quantitativa, apresentando grande amplitude de diversidade a depender do contexto sonoro do qual se fala. Quando observadas juntas as dimensões físicas e simbólicas do contexto, entram em ação mecanismos de validação que podem indicar a importância e o poder daquele som ou conjunto de sons, como sua presença, as formas de inserção, as maneiras de materialização e os significados para os atores envolvidos. Essa práxis resultante é o que se entende, neste projeto, por ética sonora, ou seja, uma simbiose entre as dimensões físicas e simbólicas do som e as maneiras pelas quais ela é observada na sociedade a partir de sua presença, inserção, materialização e significados delineados em um determinado contexto cultural (BASTOS, 2019, p. 201).
O conceito de ética sonora foi definido pela necessidade de uma compreensão sistêmica das implicações do som num sentido mais amplo do que o somente físico (a lei, a ordem, a verdade) ou do que o somente simbólico (estética, crença ou identidade, quando se tornam componentes de rupturas éticas da sociedade). Pode ser utilizado nas discussões que buscam rotular o que é música “boa” ou “ruim”, uma questão que em verdade não tem resposta absoluta, porque as variáveis são infinitas, nos debates de difícil consenso sobre a eficácia de uma legislação sonora, ou ainda, na delicada resolução de um conflito entre vizinhos, no qual um está se divertindo e o outro adoecendo, ambos pelo mesmo motivo: o som.
Da mesma forma que debatemos outros aspectos ambientais como qualidade de água, poluição visual e reciclagem de lixo, nos deparando sempre com a necessidade de não findar o diálogo para continuar encontrando soluções e equilíbrio ambiental, o debate sobre o som e a música deve também estar na base da nossa concepção e construção de uma cultura coletiva a respeito do aspecto sonoro ambiental e seus desdobramentos físicos e simbólicos. Hoje, este debate é feito de forma fragmentada (SCHAFER, 1991, 2001; CLAYTON, 2005; OBICI, 2008; CONSTANTINO, 2014; GAUTIER, 2015; TROTTA, 2020). Se é poluição sonora, chama-se o policial ou o médico, mas se é deleite ou diversão, chama-se o músico, quando, na verdade, em ambos os casos, corre-se o risco de uma visão unilateral do papel do som em determinado contexto social. Assim, nos deparamos no cotidiano com aberrações de sentido, como um fiscal de poluição sonora que não pode fazer nada pelo denunciante quando o nível de decibel está dentro do permitido, mesmo que esteja evidente o incômodo; ou com um músico que, conscientemente ou não, atua como algoz sonoro, infringindo sofrimento a outrem e poluindo ambientalmente. Tal provocação é feita a setores diversos da sociedade para que estabeleçam inter-relações e pontes para medidas educativas que guiem e sejam, ao mesmo tempo, guiadas pela construção de um nível de consciência que conecte a escuta à proposição sonora.
Respeitando a amplitude do fenômeno sonoro, as dimensões epistemológicas assumem um caráter transversal pautado em estudos sobre som, música, ética, silêncio, silenciamento, meio ambiente e relações humanas, congregando áreas como etnomusicologia, ética, ecologia, geografia, física, sociologia, direito, comunicação, antropologia e filosofia. A revisão de literatura evidencia que os debates existentes, apesar de abundantes, apresentam o fenômeno sonoro de forma fragmentada. Se é poluição sonora, chama-se o policial ou o médico. Se é deleite ou diversão, chama-se o músico. Assim, nos deparamos no cotidiano com aberrações de sentido, como um fiscal de poluição sonora que não pode fazer nada pelo denunciante quando o nível de decibel está dentro do permitido, mesmo que esteja evidente o incômodo; com um músico que, conscientemente ou não, atua como algoz sonoro, infringindo sofrimento a outrem e poluindo ambientalmente; ou, ainda, com uma pessoa que encontra-se refém atrás de um véu de silenciamento.
Tal panorama conduz a uma fundamentação teórica que amplia e problematiza como a música e o som influenciam e são influenciados pelos anseios de uma sociedade (MERRIAM, 1964), muitas vezes como sinônimos de cultura, com ênfase na estreita relação entre som e poder (SCHAFER, 1991, 2001; OBICI, 2008; ATTALI, 2009 [1984]). Alia-se aqui a ideia de ecosofia (GUATTARI, 2001, CAVALIERI FRANÇA, 2011, p. 31) ao pensamento sistêmico (CAPRA, 2013; CAPRA, LUISI, 2014) sinalizando o holismo presente no aspecto sonoro, mas negligenciado em comparação ao estudo de outros aspectos ambientais. Tais pressupostos são tomados a partir do diálogo entre a ética da contemporaneidade baumaniana (1998), e a ética da virtude discutida por Bowman (2012) para compreender meandros da relação ética do indivíduo consigo mesmo e com o outro. Se antes o que se considerava ético estava estabelecido muitas vezes pelo poder legislativo do Estado, agora - entre outros fatores, por omissão desse Estado e uma ressignificação dos valores ditos universais que, como vimos, não se sustenta – o entendimento da ética reside contextualmente nas situações, e a consciência do indivíduo é agora também sobre seu íntimo, e não mais ditada por valores externos a ele.
As perspectivas de contribuição científica, abrigadas sob a linha de pesquisa “Etnografia de costumes e práticas sonoras”, estão pautadas em três núcleos de investigação. (1) O primeiro é o projeto de pesquisa Mosaico Sonoro, que constitui o aporte inicial de um banco de dados sobre a temática no Brasil e no mundo, tornando-o uma ferramenta de consulta pública que possa demonstrar um panorama da diversidade de abordagens sobre a ética sonora e temas afins, demonstrando perfis de investigação, contextos onde estas ações estão sendo feitas e onde há maior e menor incidência de debate. (2) O segundo núcleo é o projeto de extensão Interouvir, também de caráter perene, que pretende, com base nos dados fornecidos pelo primeiro, pautar a tomada de decisão sobre intervenções a serem empreendidas nos contextos e promovendo o debate público sobre os desdobramentos da temática. É necessário criar contextos de debate sobre ética sonora para que as pessoas consigam compreender a junção do físico com o simbólico do som. A ideia é, através do debate constante, subsidiar a criação de ferramentas sociais para a formação de grupos autônomos de discussão de ética sonora. Ambos os projetos têm caráter perene e estão descritos minuciosamente adiante, sob subtítulos homônimos. De forma concomitante aos outros dois, (3) o terceiro núcleo de investigação, chamado de Escutatório, buscaria catalisar e categorizar demandas físicas e simbólicas sobre o sonoro através de contextos de escuta à população em geral. As questões, relatos e dúvidas ouvidas serviriam para compreendermos as demandas de ética sonora e observar se são evocadas algumas categorias predominantes. Este último projeto não foi realizado no primeiro ano e será retomado em 2022.
Referências
ATALLI, Jacques. Noise: The Political Economy of Music. 10. reimp. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
BASTOS, Juliana Carla. Ética sonora e suas implicações na sociedade de João Pessoa. Tese de Doutorado em Etnomusicologia, João Pessoa, UFPB, 2019.
CAPRA, Fritjof. O Tao da física: uma análise dos paralelos entre física moderna e o misticismo oriental. Tradução de José Fernandes Dias. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
CAPRA, Fritjof; LUISI, Per Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
CAVALIERI FRANÇA, Cecília. Ecos: educação musical e meio ambiente. In: Música na Educação Básica, v. 3, n. 3, p. 28-41, 2011.
CLAYTON, Martin. Toward an ethnomusicology of sound experience. In: STOBART, Henry. (Ed.). The new (ethno)musicologies. Lanham: Scarecrow Press, 2005. p. 135-163.
CONSTANTINO, Regina. Uma ecologia para o som: do rito ao rush. Edição da autora, 2010.
GAUTIER, Ana María Ochoa. Silence. In: NOVAK, David; SAKAKEENY, Matt (Eds.). Keywords in Sound. London: Duke University Press, 2015, p. 183-192.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 11. ed. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2001.
MERRIAN, Alan. The anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.
OBICI, Giuliano. Condição da escuta: mídias e territórios sonoros. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trench Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
TROTTA, Felipe. Annoying music in everyday life. New York: Bloomsbury Academic, 2020.